sábado, 18 de julho de 2009

ARTIGOS EXTRAORDINÁRIOS


Além das GRANDES ENTREVISTAS, começo a postar aqui também ARTIGOS EXTRAORDINÁRIOS que me fazem a cabeça e que não me canso de ler. E vou começar com o que escreveu o gênio de Irará Tom Zé sobre o gênio de Juazeiro João Gilberto. O artigo foi publicado no Jornal do Brasil (3/6/2001) e no livro TROPICALISTA LENTA LUTA / Tom Zé (PUBLIFOLHA, 2003). Depois diz aí se não é pequeno esse meu fascínio pelo Caetano?

JOÃO DA ESQUINA
Tom Zé

Austregésilo de Athayde foi encarregado de acompanhar Einstein quando o cientista alemão visitou o Brasil.
Juntos, os dois iam e vinham. Conta-se que a cada momento Austregésilo tirava um caderninho do bolso e tomava nota. A certa altura Einstein não resistiu:
“O que é que o senhor tanto anota?”
“O senhor sabe, que eu sou escritor, quando tenho uma boa idéia anoto, para não esquecer. O senhor não toma nota de suas boas idéias?”
Einstein respondeu: “Não, eu só tive uma única idéia na vida”.
João Gilberto poderia dizer o mesmo. Só que a idéia desses dois, Nossa Senhora, bota “única” nisso.
Veja-se que ambos, João Gilberto e Einstein, extraíram suas teorias e conclusões do mesmo tipo de material: gravidade, força de atração, perspectiva, espaço, tempo e contratempo. Tanto a teoria da relatividade quanto a batida de João Gilberto têm o mesmo eixo.
Se entre duas pessoas das quais já ouvi falar eu fosse escolher uma para juntar no mesmo saco com João, eu escolheria seu Alberto, o Einstein da relatividade.
Outra ocorrência comum a ambos: em1958, quando a bossa-nova apareceu, todos os professores de canto do Brasil se uniram para dizer que João Gilberto era desafinado e não tinha ritmo.
O mesmo sucedeu a seu Alberto. E quando lhe disseram: “Dr. Einstein, duzentos professores da Europa se reuniram para dizer que o senhor está errado”, ele respondeu: “Se eu estivesse errado, bastaria um.”
Visto da relatividade de nossa perspectiva, o erro esteve sempre perto de João, nos dias finais da metamorfose do samba-canção em bossa-nova.
Há vários exemplos:
Em maio de 1958 Vinicius de Moraes assina a contracapa de Canção do Amor Demais, LP no qual Elizete Cardoso, a Divina, interpreta Vinicius e Jobim. Nem cita João, que tocou sua famosa batida em duas canções do disco. Conta-se que no estúdio, enquanto todos se exaltavam com a beleza das músicas e dos arranjos, Elizete mostrava uma ruga de insatisfação no rosto. Quando inquirida, disse: “Não, também acho tudo lindo!... mas... aquele violão... parece meio fora”.
Era João Gilberto tocando no arranjo de “Chega de Saudade”.
Seja ela perdoada pela blasfêmia, porque poderia até estar certa, na relatividade das coisas. Leia-se o próprio Jobim – poucos meses depois, na contracapa do primeiro LP de bossa-nova, cuja canção título era a mesma “Chega de Saudade” – leia-se Jobim dizendo: “Quando a orquestra acompanha João, a orquestra também é ele”. E como os arranjos são do próprio Jobim, ele afirma ainda que teve de modificar e adaptar a orquestra à batida de João e “à sua sensibilidade”.
Mas o disco de Elizete esclarece a obra de João porque aquele LP, exatamente ali, na divisão das águas, tem um pé no passado e outro no futuro:
1) foi lançado mesmo antes da bossa-nova;
2) nele estão o arranjador, o compositor e um dos principais letristas da bossa-nova;
3) várias canções da bossa-nova ali estão.
Entretanto, João Gilberto dará, alguns meses depois, a sua interpretação pessoal, e as mesmas peças e pessoas dobrarão a esquina da história. Esquina onde o que parece um passo passa do ano-luz. Então, João não é nada. Só a esquina. Fiquem com todas as honras. A ele, a esquina. Ele é a gravidade que impõe à reta da luz um ângulo de 90 graus.
João Araújo, o pai de Cazuza, conta que durante todo o ano de 57 levava uma fita de rolo para a reunião mensal dos produtores da Odeon.
Todos os meses, quando tirava a fita da pasta, os outros produtores diziam: “Lá vem você com seu cantor-ventríloquo.”
Esse era um dos “toques” de João: aquela voz sem impostação, fio de voz, colocada mais no nariz, sem vibrato, dando tudo com enxuta economia ao novo microfone dinâmico, cujo correspondente no nosso mundo cotidiano era o prosaico banheiro, exato local onde João Gilberto descobriu e ensaiou a dita voz.
Naqueles tempos de vozes quebra-cristal, ninguém, em sã consciência, poderia dizer que “aquilo” era um cantor.
O elementar e complementar era o sentido rítmico, mais sugerido que obedecido, com os acentos tonais boiando sobre as águas dos marços e compassos.
O barquinho vai,
O barquinho vem.
Daí ao E = mc² de Einstein não é longe. Pois se na teoria da relatividade a gravidade atrai luz, na bossa-nova a luz cria gravidade. De forma que E = mc², traduzido em bossa-novês, quer dizer: a Massa do Contratempo repetido gera energia.
Mas tudo isso aconteceu depois do dia em que a bossa-nova pariu o Brasil, pois éramos, até então, apenas aquele pedaço amarelo do mapa-múndi, defronte da África.

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