QUE JUVENTUDE É ESSA!
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Zuenir Ventura
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Na última semana de setembro, o III Festival Internacional da Canção transformou a intolerância em espetáculo e a exibiu para todo o país – ao vivo e ao som de vaias, mais do que de música. Na noite de 28, no teatro do Tuca, em São Paulo, algumas dúzias de ovos, tomates e bolas de papel – acompanhadas por uma interminável vaia – iam proibir que Caetano Veloso cantasse É proibido proibir, mas em compensação iam provocá-lo a fazer o mais brilhante discurso de sua vida.
Era a última noite da fase nacional, que classificaria seis músicas para representar o Brasil nas semifinais e finais do Maracanãzinho. Caetano fizera a música por insistência do seu empresário. Lendo uma reportagem na revista Manchete, Guilherme Araújo viu o graffiti e teve a idéia:
- Essa frase é linda, Caetano. Faz uma música usando-a como refrão.
Preguiçoso, Caetano demorou a fazê-la, mas Guilherme não desistiu. Um dia, a música saiu.
“Achei meio boba, mas bonitinha”, confessa o autor. “Todo mundo, na hora, achou bonita. No dia seguinte, eu já achava péssima.”
Embora só gostasse do ritmo e de uma parte da letra – “Eu digo sim, eu digo não ao não” –, quando veio o festival da Globo ele resolveu inscrevê-la, e convidou para acompanhá-lo o conjunto Os Mutantes, que tinha aquela garota sardenta, muito moleca, filha de americanos, Rita Lee Jones.
Caetano ainda se lembra de que estava vestido de plástico verde e negro, “com uns colares de correntes, tomadas, coisas quebradas, pedaços de lâmpadas, uma coisa muito estranha”. Quando começou a cantar, Gil e Gal estavam na platéia e sua mulher, Dedé, nos bastidores. De repente, a uma ordem em inglês, irrompeu no palco a surpresa que Caetano mantivera em absoluto segredo e que descreve assim: “Pulando e dando gritos, um rapaz louro de dois metros de altura, esquisito, muito louco, roupas mais estranhas do que as minhas”.
Ninguém sabia quem era, mas a entrada intempestiva desse americano do Texas chamado Johnny Dandurand levou a platéia do Tuca a um transe histérico. Primeiro, foram os apupos e os xingamentos, em seguida as bolinhas de papel e, logo depois, os ovos e tomates. Caetano ainda tentou cantar, ma era impossível. Tinhoso, ele só desistiu quando resolveu realizar um dos dois mais escandalosos happenings daqueles tempos – o outro fora de Sérgio Ricardo no ano anterior, ao quebrar o violão e atirá-lo em pedaços sobre uma platéia parecida.
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Na última semana de setembro, o III Festival Internacional da Canção transformou a intolerância em espetáculo e a exibiu para todo o país – ao vivo e ao som de vaias, mais do que de música. Na noite de 28, no teatro do Tuca, em São Paulo, algumas dúzias de ovos, tomates e bolas de papel – acompanhadas por uma interminável vaia – iam proibir que Caetano Veloso cantasse É proibido proibir, mas em compensação iam provocá-lo a fazer o mais brilhante discurso de sua vida.
Era a última noite da fase nacional, que classificaria seis músicas para representar o Brasil nas semifinais e finais do Maracanãzinho. Caetano fizera a música por insistência do seu empresário. Lendo uma reportagem na revista Manchete, Guilherme Araújo viu o graffiti e teve a idéia:
- Essa frase é linda, Caetano. Faz uma música usando-a como refrão.
Preguiçoso, Caetano demorou a fazê-la, mas Guilherme não desistiu. Um dia, a música saiu.
“Achei meio boba, mas bonitinha”, confessa o autor. “Todo mundo, na hora, achou bonita. No dia seguinte, eu já achava péssima.”
Embora só gostasse do ritmo e de uma parte da letra – “Eu digo sim, eu digo não ao não” –, quando veio o festival da Globo ele resolveu inscrevê-la, e convidou para acompanhá-lo o conjunto Os Mutantes, que tinha aquela garota sardenta, muito moleca, filha de americanos, Rita Lee Jones.
Caetano ainda se lembra de que estava vestido de plástico verde e negro, “com uns colares de correntes, tomadas, coisas quebradas, pedaços de lâmpadas, uma coisa muito estranha”. Quando começou a cantar, Gil e Gal estavam na platéia e sua mulher, Dedé, nos bastidores. De repente, a uma ordem em inglês, irrompeu no palco a surpresa que Caetano mantivera em absoluto segredo e que descreve assim: “Pulando e dando gritos, um rapaz louro de dois metros de altura, esquisito, muito louco, roupas mais estranhas do que as minhas”.
Ninguém sabia quem era, mas a entrada intempestiva desse americano do Texas chamado Johnny Dandurand levou a platéia do Tuca a um transe histérico. Primeiro, foram os apupos e os xingamentos, em seguida as bolinhas de papel e, logo depois, os ovos e tomates. Caetano ainda tentou cantar, ma era impossível. Tinhoso, ele só desistiu quando resolveu realizar um dos dois mais escandalosos happenings daqueles tempos – o outro fora de Sérgio Ricardo no ano anterior, ao quebrar o violão e atirá-lo em pedaços sobre uma platéia parecida.
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- Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? -
- Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? -
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gritou Caetano mais alto do que a gritaria. Era o começo do seu discurso ao mesmo tempo didático e impiedoso.
Caetano pretendia ler um poema de Fernando Pessoa e dar um grito de apoio a Cacilda Becker, que sofria pressões da censura para rescindir seu contrato na televisão. Esses dois nomes e mais o do compositor Chico de Assis, membro do júri, vão aparecer em seguida sem que a platéia entendesse porque, se é que aquela gente estava a fim de entender alguma coisa.
Exasperada, a platéia tentava abafar, com gritos, o inesperado comício.
Caetano resolvera despejar naquela platéia ululante todas as suas mágoas, inclusive o fato de terem vaiado, no festival do ano anterior, Alegria, alegria, por considerá-la imitação de música americana.
As vaias aumentaram. Num pulo, Gil já estava no palco abraçado ao amigo e revidando com deboche as agressões. Encarava o público, ria, de vez em quando pegava um tomate, dava uma mordida e devolvia à platéia. Rita fazia piadas: “Aí, Caetano Meloso”.
Caetano conseguia transformar a sua fúria numa torrente de afirmações provocadoras, cortantes. De vez em quando ele cantava, ou gritava para a platéia de censores: “É proibido proibir!”.
O discurso chegava ao final, e ia sobrar para o júri.
A cantora Nara Leão fazia parte do júri e seu marido então, Cacá Diegues, provavelmente não se inspirou no espetáculo para lançar a categoria Patrulhas Ideológicas, com a qual, uma década depois, desmoralizou o entulho autoritário de esquerda, abrindo caminho para uma perestroika à nossa maneira e avant-la-lettre. Mas não há dúvida de que aquela foi a noite de glória das patrulhas ideológicas.
Curiosamente, a segunda lição àqueles jovens de esquerda, “pra frente”, viria de Nelson Rodrigues, o reacionário, em uma crônica clássica:
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“A vaia selvagem com que o receberam já me deu uma certa náusea de ser brasileiro. Dirão os idiotas da objetividade que ele estava de salto alto, plumas, peruca, batom etc. Ele era um artista. De peruca ou não, era um artista. De plumas, mas artista. (...) Ele era um momento da consciência brasileira. E vimos como a implacável lucidez acuou e bateu a jovem obtusidade”.
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Ao voltar para os bastidores, Caetano foi recebido por Dedé, que não chegara a ouvir o discurso do marido. O mais indignado agora era Gil: “Eles estão embotados pela burrice que uma coisa chamada Partido Comunista resolveu pôr na cabeça deles”.
Depois que Dedé retirou os colares do pescoço do marido, deixando apenas um “pra dar sorte”, Caetano saiu do teatro protegido pela polícia e com a disposição de não mais participar de festivais. Inconformado com a desclassificação de Gil, ele retirou a sua da competição, apesar da ótima classificação que obtivera.
Uma semana depois, sem Caetano e Gil, o III Festival da Canção escolheria o vencedor brasileiro que iria concorrer com os estrangeiros. Paralelamente ao evento, realizava-se na boate Sucata, de Ricardo Amaral, o que Caetano ainda chama de “festival marginal ao festival que seguia”: um espetáculo tropicalista. Como parte dos elementos visuais de cena, destacava-se a bandeira de Hélio Oiticica: “Seja marginal, seja herói”. O show, a bandeira de Hélio, alguns acordes que Os Mutantes dedilhavam ao violão e que os censores confundiram com o hino nacional, tudo isso, mas principalmente a campanha de delação de um certo Randal Juliano, que todo dia pedia pela rádio e TV a prisão de Caetano, levaram à proibição do show por um juiz, a ridículas acareações entre Amaral e Caetano, e a prisão do compositor, logo depois do AI-5.
gritou Caetano mais alto do que a gritaria. Era o começo do seu discurso ao mesmo tempo didático e impiedoso.
Caetano pretendia ler um poema de Fernando Pessoa e dar um grito de apoio a Cacilda Becker, que sofria pressões da censura para rescindir seu contrato na televisão. Esses dois nomes e mais o do compositor Chico de Assis, membro do júri, vão aparecer em seguida sem que a platéia entendesse porque, se é que aquela gente estava a fim de entender alguma coisa.
Exasperada, a platéia tentava abafar, com gritos, o inesperado comício.
Caetano resolvera despejar naquela platéia ululante todas as suas mágoas, inclusive o fato de terem vaiado, no festival do ano anterior, Alegria, alegria, por considerá-la imitação de música americana.
As vaias aumentaram. Num pulo, Gil já estava no palco abraçado ao amigo e revidando com deboche as agressões. Encarava o público, ria, de vez em quando pegava um tomate, dava uma mordida e devolvia à platéia. Rita fazia piadas: “Aí, Caetano Meloso”.
Caetano conseguia transformar a sua fúria numa torrente de afirmações provocadoras, cortantes. De vez em quando ele cantava, ou gritava para a platéia de censores: “É proibido proibir!”.
O discurso chegava ao final, e ia sobrar para o júri.
A cantora Nara Leão fazia parte do júri e seu marido então, Cacá Diegues, provavelmente não se inspirou no espetáculo para lançar a categoria Patrulhas Ideológicas, com a qual, uma década depois, desmoralizou o entulho autoritário de esquerda, abrindo caminho para uma perestroika à nossa maneira e avant-la-lettre. Mas não há dúvida de que aquela foi a noite de glória das patrulhas ideológicas.
Curiosamente, a segunda lição àqueles jovens de esquerda, “pra frente”, viria de Nelson Rodrigues, o reacionário, em uma crônica clássica:
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“A vaia selvagem com que o receberam já me deu uma certa náusea de ser brasileiro. Dirão os idiotas da objetividade que ele estava de salto alto, plumas, peruca, batom etc. Ele era um artista. De peruca ou não, era um artista. De plumas, mas artista. (...) Ele era um momento da consciência brasileira. E vimos como a implacável lucidez acuou e bateu a jovem obtusidade”.
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Ao voltar para os bastidores, Caetano foi recebido por Dedé, que não chegara a ouvir o discurso do marido. O mais indignado agora era Gil: “Eles estão embotados pela burrice que uma coisa chamada Partido Comunista resolveu pôr na cabeça deles”.
Depois que Dedé retirou os colares do pescoço do marido, deixando apenas um “pra dar sorte”, Caetano saiu do teatro protegido pela polícia e com a disposição de não mais participar de festivais. Inconformado com a desclassificação de Gil, ele retirou a sua da competição, apesar da ótima classificação que obtivera.
Uma semana depois, sem Caetano e Gil, o III Festival da Canção escolheria o vencedor brasileiro que iria concorrer com os estrangeiros. Paralelamente ao evento, realizava-se na boate Sucata, de Ricardo Amaral, o que Caetano ainda chama de “festival marginal ao festival que seguia”: um espetáculo tropicalista. Como parte dos elementos visuais de cena, destacava-se a bandeira de Hélio Oiticica: “Seja marginal, seja herói”. O show, a bandeira de Hélio, alguns acordes que Os Mutantes dedilhavam ao violão e que os censores confundiram com o hino nacional, tudo isso, mas principalmente a campanha de delação de um certo Randal Juliano, que todo dia pedia pela rádio e TV a prisão de Caetano, levaram à proibição do show por um juiz, a ridículas acareações entre Amaral e Caetano, e a prisão do compositor, logo depois do AI-5.
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Abaixo, o discurso histórico (na íntegra) de Caetano Veloso
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