segunda-feira, 9 de novembro de 2009

PATRULHARAM CAETANO, DE NOVO

Sérgio Malbergier

20 anos depois da queda do Muro de Berlim, a esquerda volta a patrulhar Caetano Veloso.
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Se na ditadura lhe cobravam posição, agora o atacam por tê-la.
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Caetano revelou-se dos poucos machos políticos dessa era Super Lula. Na semana passada, corajoso, chamou Lula de "analfabeto" e "grosseiro" após ser questionado sobre as eleições presidenciais de 2010:
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"Pode botar aí. Não posso deixar de votar nela [Marina Silva]. É por demais forte, simbolicamente, para eu não me abalar. Marina é Lula e é Obama ao mesmo tempo. Ela é meio preta, é uma cabocla, é inteligente como o Obama, não é analfabeta como o Lula que não sabe falar, é cafona falando, grosseiro."
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No, digamos, subperonismo que nos encontramos, são raros os políticos que questionam Lula e seus 70%. Os artistas, então, viciados em Petrobras, Eletrobrás, isenções fiscais e vales culturais, ou se calam ou bajulam. Só sobrou a imprensa independente, que por isso é acusada de partidária, e Caetano Veloso.
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Mas Lula não aceita (mais) desaforo. Do pedestal que a história lhe ergueu, acima de tudo e todos, parte sempre para o ataque.
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Falando em festa do PC do B em São Paulo, no mesmo discurso em que comparou táticas do PSDB às de Hitler, Lula, o aliado de Ahmadinejad, disparou contra Caetano:
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"Tem gente que acha que a inteligência está ligada à quantidade de anos de escolaridade que você teve. Não tem nada mais burro que isso. A universidade te dá conhecimento. Inteligência é outra coisa", disse o petista, acrescentando, com o seu tom cada vez mais vingador do futuro: "Quem diz o que quer ouve o que não quer".
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Mas Caetano, que não disse o que Lula disse que ele disse, não se intimidou. Respondeu ao presidente, com elegância, um dia depois, em show em São Paulo.
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Disse à plateia que a semana havia sido marcada pela morte de duas grandes personalidades, Neguinho do Samba, fundador do Olodum, e o antropólogo judeu-francês Claude Lévi-Strauss.
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Disse que, apesar de todos os títulos e cadeiras acadêmicas de Lévi-Strauss, Neguinho do Samba, sem quase estudo, foi mais importante para ele e tanta gente brasileira por ter inventado a seminal batida do Olodum, depois espalhada por Paul Simon e Michael Jackson.
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(Aproveitou ainda para reclamar, com razão, que ninguém da imprensa o ligou para falar de Neguinho do Samba, enquanto foi muito procurado para comentar sobre o antropólogo. Pelo menos a crítica à imprensa o une a Lula.)
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A música é a grande arte do Brasil, e a mais popular, tanto na fonte criadora como no consumo.
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Caetano é o mais inventivo de nossos músicos vivos, o mais inquieto, inteligente, corajoso. Devemos ouvi-lo, agora roqueiro, com um power trio de sonoridade máxima.
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Seu show está muito bem calibrado, com revisitas marcantes a clássicos como "Irene", "Não Identificado", "Maria Bethânia". Que me fizeram lembrar que Caetano poderia ter talvez reivindicado, como muitos dos patrulheiros petistas, uma Bolsa Ditadura por ter se exilado em Londres na ditadura militar, em pleno sucesso.
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Mas o genial Caetano quer cantar, quer opinar. E seu espírito inquieto bate de frente com esse quase autoritarismo popular.
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O rolo compressor lulista está pronto para esmagar toda voz dissonante que questione o governo, seus feitos, seus planos e sua retórica. Os políticos estão com medo, calados, o povo, extasiado com os carros e lavadoras no crediário.
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Mas Caetano falou. E foi aplaudido de pé em Moema.
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Por isso ele canta, não pode parar.
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Sérgio Malbergier é editor do caderno Dinheiro da Folha de S. Paulo. Foi editor do caderno Mundo (2000-2004), correspondente em Londres (1994) e enviado especial a países como Iraque, Israel e Venezuela, entre outros. Dirigiu dois curta-metragens, "A Árvore" (1986) e "Carô no Inferno" (1987). Escreve para a Folha Online às quintas.

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