quinta-feira, 29 de abril de 2010

VANGUARDA RETROSPECTIVA

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Aroldo Pedrosa
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O Carnaval é a maior festa popular do mundo. E os três elementos que mais identificam o Brasil no planeta são: o CARNAVAL, o FUTEBOL e a AMAZÔNIA – assim com maiúsculas mesmo!
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Eu que nasci em Macapá, nesse ponto eqüidistante entre os trópicos, onde o rio Amazonas despeja o doce sabor de suas águas amorenadas logo ali no oceano Atlântico, posso afirmar cantando com muito orgulho: “O meu valor me faz brilhar/ Iluminar o meu estado de amor/ Comunidade impõe respeito/ Bate no peito eu sou Beija-Flor”. É o refrão do samba-enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, que, no Carnaval de 2008 – olha só que coisa boa! – vai homenagear a minha cidade na Marquês de Sapucaí.
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No dia 4 de fevereiro – uma segunda-feira – Macapá faz 250 anos. E o desfile da campeã carioca acontece nas primeiras horas da manhã do dia seguinte, ou seja, na aurora da terça-feira gorda de Carnaval. “É manhã/ Brilho de Fogo sob o sol do novo dia/ Meu talismã, a minha fonte de energia/ Oh! Deusa do meu samba, a flor de Macapá”. Haveria melhor presente?
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Por ser geminiano e ligeiramente tímido, antes eu não gostava de carnaval. Quer dizer, não via muita graça no desfile das escolas de samba pela televisão. Achava cansativo e os comentários excessivamente enfadonhos. Até que um dia o tilintar mágico da frase “Povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual!” me encheu de cores os olhos para o sentido real e mais profundo do que é o Carnaval. Era o carnavalesco-filósofo Joãosinho Trinta, respondendo aos patrulheiros da fantasia, no auge dos anos de chumbo (1976), incomodados por tanto luxo e brilho no desfile da Beija-Flor.
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Treze anos depois, o mesmo Joãosinho Trinta, nutrido pelo espírito antropofágico e anárquico de Oswald de Andrade, ao ler o clássico francês Os Miseráveis, de Victor Hugo, concebe o soberbo enredo Ratos e Urubus, larguem minha fantasia. Apesar de o Brasil ter acabado de se livrar daquele regime opressor de vinte anos e reconquistado, sobretudo, o direito de votar pra presidente, as coisas não estavam lá nada fáceis e a aquarela pintada pelo grande e inesquecível Ary Barroso se borrava no cenário verde e amarelo da política do vale tudo. E assim a Azul-e-Branco de Nilópolis põe o lixo na Passarela do Samba, revolucionando mais uma vez o nosso carnaval. “Reluziu... / É ouro ou lata/ Formou-se a grande confusão/ Qual areia na farofa/ É o luxo e a pobreza/ No meu mundo de ilusão”. O genial Joãosinho Trinta desabotoava a camisa encardida e rota do Brasil de 1989 e exibia suas pútridas feridas para os olhos estupefatos do mundo. Lembro que um dos comentaristas da Rede Globo, ao ver a escola entrar na avenida com seus foliões em farrapos, deixou escapar essa: “É muita ousadia... Será que isso vai dar certo?”. Em menos de dez minutos de desfile a Beija-Flor arrebentava na Sapucaí. Até o Cristo mendigo – o carro abre-alas – proibido pela Justiça por pressões da Igreja e encoberto por um imenso plástico negro sob uma grande faixa aberta com os dizeres “Mesmo proibido, olhai por nós!”, fazia harmonia com o enredo. “Xepa, de lá pra cá xepei/ Sou na vida um mendigo/ Na folia eu sou rei”, como numa espécie de protesto à censura explodia o samba puxado por Neguinho da Beija-Flor.
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Fechando o apoteótico desfile, a realidade misturada à fantasia: o carnavalesco Joãosinho Trinta, caracterizado de gari e empunhando um escovão, ora sambava, ora varria o chão da avenida misturado ao pessoal do serviço de limpeza da Riotur. No cume do carro alegórico à frente, o banho monumental da mais bela e seminua mulata da era sambódromo, inspirando-me a compor os versos “Na avenida a água deita e rola/ Desliza nas cascatas do corpo da mulher”. No amanhecer da terça-feira, o Brasil acordava nas asas de um passarinho, no bico de um beija-flor. Quer dizer, com exceção do superlativo absoluto da contradição João Máximo, que julgou o quesito samba-enredo e que, por meio ponto, deu o título à Imperatriz Leopoldinense. Em Reconvexo, o poeta-cantor Caetano Veloso reverenciou o desfile da escola com essa pérola: “Quem não seguiu o mendigo Joãosinho Beija-Flor?”. Claro, o João Mínimo!
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Na madrugada da quarta-feira de cinzas daquele mesmo carnaval, o enredo da Beija-Flor parecia não ter fim nas imagens da tragédia que se abatera sobre a cidade do Rio de Janeiro, no plantão ao vivo mostrado pela televisão: o operário João da Silva mergulhado na lama, exibindo ainda restos de sua fantasia, à procura do barraco que ele poeticamente chamava de lar e que desabara junto com o morro sob o peso das águas de março. E foi com essas imagens rolando intempestivamente na minha cabeça que compus o samba “Último Enredo”: Mesa posta, sobremesa/ Água corre, correnteza/ Marabaixo, morro ao chão/ Ilusões destiladas/ No painel a paisagem urbana/ Retirantes corações. Um partido alto dorido, cujo protagonista “do alto de tanta incerteza” sabe que a poeira emana mesmo do chão. “Último Enredo” conquistou no ano de 2000 a quarta premiação no IV Festival Amapaense da Canção. O paraense Olivar Barreto, que hoje mora na França, foi o intérprete. Há de ser refeita e farta a mesa/ Em confeitados sonhos/ Servidos em prato fundo antes de ruir/ Morro abaixo o mundo/ De cair sobre o quadro o pano/ sufocando as ilusões/ Sufocando as ilusões. A melodia, do compositor amapaense Joel Elias que também é jornalista.
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E foi assim que nasceu no meu coração de poeta da floresta essa grande paixão pela Beija-Flor. Depois vieram outros enredos não menos espetaculares e surpreendentes como “Bidu Sayão e o Canto de Cristal”, criado pelo carnavalesco paraense Milton Cunha para o desfile de 1985, e as criações coletivas “Pará: o Mundo Místico dos Caruanas nas Águas do Patu-Anu” – que levou a escola a dividir com o carnaval da Verde-e-Rosa “Chico Buarque da Mangueira” o título de campeã de 1998 – e “Manôa, Manaus, Amazônia, Terra Santa: Alimenta o Corpo, Equilibra a Alma e Transmite a Paz”, responsável pelo bicampeonato de 2004. Finalmente o enredo de 2007 – “Áfricas: do Berço Real à Corte Brasiliana” – dos carnavalescos Alexandre Louzada, Fran-Sérgio, Shangai, Laíla & Ubiratan Silva, que, com virtuosismo, pôs toda a exuberância da mãe-África na Passarela do Samba, fazendo da Azul-e-Branco a campeã do Carnaval.
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E a gora é a nossa vez com “Macapaba: Equinócio Solar, Viagens Fantásticas ao Meio do Mundo”. Quer saber? No Rio de Janeiro, em fevereiro, quem vai abrir os braços no corcovado sou eu... para cantar o samba apaixonante da minha querida Beija-Flor, como diria a estonteante Camila Bebel Pitanga: Na maior catiguria...
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Artigo publicado na edição 12 da revista Vanguarda Cultural – fevereiro de 2008.

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