Aos 80 anos de idade, o mais ilustre violonista do Amapá comemora também 70 anos de carreira musical
Lulih Rojanski & Aroldo Pedrosa
O mundo delirava ao ritmo do charleston e ao som do jazz de Louis Armstrong, quando o músico e compositor Nonato Leal nasceu, na década de 1920. Os automóveis começavam a ser produzidos em massa e tornaram-se populares. Pela primeira vez um avião sobrevoou o oceano Atlântico e a primeira transmissão radiofônica da história do Brasil apresentou Pixinguinha ao vivo. Rodolfo Valentino e Charles Chaplin lotavam salas de cinema pelo mundo afora. Artistas brasileiros movimentaram São Paulo com a Semana de Arte Moderna, em busca de uma expressão referencialmente brasileira, e finalmente se iniciaram as gravações musicais elétricas. Na Amazônia, não havia estradas nem incentivo à migração. A região vivia à margem do deslumbramento de um mundo que se curvava diante das tecnologias industriais que em pouco tempo encheriam as casas da classe média de eletrodomésticos. E em Vigia, um município do interior da Amazônia criado em 1616 – seis dias antes da fundação de Belém – Nonato Leal nascia também à margem dos acontecimentos nacionais, em um julho de sol sobre a floresta, em 1927, mas sob o signo da criatividade e da efervescência artística de uma década que estendeu raízes para o mundo moderno.
Pois o artista se fez apesar das lonjuras e desde a mais tenra idade soube que a música era o seu destino. Como as notas instrumentais o envolvessem em ternas melodias desde o berço – o pai e a mãe eram músicos – mal havia completado 10 anos quando se apresentou pela primeira vez ao público. Tocava então violino. Depois vieram o banjo, o cavaquinho, o bandolim, a viola, e nesta seqüência de cordas chegou o violão, o instrumento que o acompanha até aqui, aos 80 anos de idade, 70 deles dedicados à música.
“A música é hereditária, eu a herdei de meu pai, Manoel da Vera Cruz Leal, que era um excelente músico. Minha mãe tocava piano e todos os meus irmãos tocavam algum tipo de instrumento. A casa era uma verdadeira orquestra”, relembra Nonato. Mas a primeira participação oficial em um grupo musical veio pouco depois, quando já morava em Belém e foi apresentado pelo músico Aluísio Beviláqua ao conjunto regional Soberanos do Ritmo. Era uma época em que os conjuntos regionais reinavam em apresentações pelos coretos e clubes, executando em flauta, violão e cavaquinho, o choro, o samba, o samba-canção, o maxixe, a marcha, o bolero, a rumba e até mesmo o tango argentino.
Com o Soberanos do Ritmo viajou pela região amazônica fazendo shows, e foi morar no Rio de Janeiro, atrás da idéia de que “para tocar nada era longe”. Lá, apresentava-se nos lugares onde houvesse qualquer público, pois tudo o que importava era estar com “o pé na profissão”. Dois anos durou a aventura, interrompida pela separação do grupo. De volta a Belém, viveu uma juventude boêmia, envolvido pelo encanto das serestas, tendo sempre o violão por companheiro.
Tinha 25 anos quando foi convidado para vir a Macapá passar uma chuva. Era inverno, quando na Amazônia as chuvas multiplicam o tempo de quem tem pressa, aumentam as distâncias e enchem de poesia os repetidos verdes da paisagem. O músico foi ficando, porque a terra o foi acolhendo. E a chuva que veio passar tem durado 55 anos.
Chegou a Macapá no dia 2 de março de 1952, casou-se com Paracy Leite e construiu uma família de seis filhos: Venilton, Vanildon, Venilson, Vera, Vânia e Vanilze. Os primeiros nasceram junto com a Bossa Nova, no final dos anos 50, três deles trouxeram a música no sangue e no destino e, assim como Nonato, aprenderam a tocar por conta própria.
Nonato Leal não freqüentou conservatórios musicais nem teve em sua juventude professores que o elevassem, através de regras, disciplina e conhecimento, à categoria de grande músico. Tornou-se um grande músico graças à sua própria boa vontade, seu esforço e aos exercícios de imitação dos ídolos, cuja música sempre tirou de ouvido. Já possuía a experiência de um mestre quando precisou estudar música para tornar-se formalmente professor, aos 45 anos, tendo como instrutor Oscar Santos, o mestre Oscar, um revolucionário da educação musical no Amapá.
Mas Dilermando Reis, um dos mais importantes e versáteis violonistas brasileiros, falecido em 1977, é o seu grande ídolo. Considera que sempre aprendeu música ouvindo seus discos. Dele, Nonato tem uma de suas melhores lembranças: “No dia em que o conheci, toquei para ele uma valsa”. Outra influência importante em sua trajetória musical vem do violonista paraense Sebastião Tapajós, com quem cultiva antiga amizade. “Toda vez que o Sebastião Tapajós vem a Macapá eu aprendo algo novo com ele”, conta.
Nonato Leal tem participação importante na história dos festivais de música do Estado. O primeiro de que participou, na década de 1960, ainda no governo de Ivanhoé Martins, lhe rendeu as três primeiras colocações. O primeiro lugar com Canção Anti-muro, uma música de protesto feita em parceria com o poeta Alcy Araújo. O segundo lugar com uma parceria entre ele e o poeta Isnard Lima, e o terceiro lugar com o poeta Cordeiro Gomes. A parceria constante com Alcy, um dos seus grandes amigos, lhe rendeu ainda premiações em outros festivais, além de diversos sambas para escolas de samba de Macapá.
A realização do sonho da gravação de um disco, todavia, só veio aos 70 anos, através de incentivo do governador do Estado na época, João Capiberibe. Com a direção musical de Manoel Cordeiro, Nonato gravou Lamento Beduíno, em 1998, um CD com 15 faixas, cuja música principal é inspirada nas caravanas que atravessam o deserto do Saara. O segundo CD, Coração Popular, foi gravado em 2001 e, das 15 faixas, seis são composições suas. Os dois trabalhos tiveram suas edições esgotadas, e um terceiro está ainda no sonho do músico, que para gravar precisa de uma instituição ou empresa que assuma os custos.
Nonato sempre tocou pelos bares na noite, desde o princípio de sua carreira. A música sempre lhe garantiu renda. Hoje, todavia, prefere tocar menos nos bares, e ainda assim somente pela satisfação que lhe dá apresentar-se com seu violão ao público, pois mantém uma posição crítica em relação à exploração a que os novos músicos se submetem quando aceitam tocar na noite por qualquer preço. Outra consideração que Nonato Leal faz diz respeito à escolha dos músicos que se apresentam nos eventos culturais: “Existe uma discriminação acintosa ao artista idoso. Muitos produtores confundem idade e talento. Eles preferem apresentar um cantor de 20 anos, mas de uma mediocridade sem tamanho, do que dar espaço ao artista de mais idade”.
Em sua casa, na margem do lago da praça Floriano Peixoto, onde mora com a mulher Paracy, o músico renova sua inspiração diariamente com exercícios de violão – segundo ele, um bálsamo para atenuar qualquer problema. Come muito peixe, não fuma, faz caminhadas em torno do lago e diz que “não esquenta a cabeça”. Aos artistas novos, que vivem uma época em que a efervescência musical privilegia os gostos menos sofisticados, Nonato Leal, um músico de talento irretocável, recomenda paciência e humildade.
Lulih Rojanski & Aroldo Pedrosa
O mundo delirava ao ritmo do charleston e ao som do jazz de Louis Armstrong, quando o músico e compositor Nonato Leal nasceu, na década de 1920. Os automóveis começavam a ser produzidos em massa e tornaram-se populares. Pela primeira vez um avião sobrevoou o oceano Atlântico e a primeira transmissão radiofônica da história do Brasil apresentou Pixinguinha ao vivo. Rodolfo Valentino e Charles Chaplin lotavam salas de cinema pelo mundo afora. Artistas brasileiros movimentaram São Paulo com a Semana de Arte Moderna, em busca de uma expressão referencialmente brasileira, e finalmente se iniciaram as gravações musicais elétricas. Na Amazônia, não havia estradas nem incentivo à migração. A região vivia à margem do deslumbramento de um mundo que se curvava diante das tecnologias industriais que em pouco tempo encheriam as casas da classe média de eletrodomésticos. E em Vigia, um município do interior da Amazônia criado em 1616 – seis dias antes da fundação de Belém – Nonato Leal nascia também à margem dos acontecimentos nacionais, em um julho de sol sobre a floresta, em 1927, mas sob o signo da criatividade e da efervescência artística de uma década que estendeu raízes para o mundo moderno.
Pois o artista se fez apesar das lonjuras e desde a mais tenra idade soube que a música era o seu destino. Como as notas instrumentais o envolvessem em ternas melodias desde o berço – o pai e a mãe eram músicos – mal havia completado 10 anos quando se apresentou pela primeira vez ao público. Tocava então violino. Depois vieram o banjo, o cavaquinho, o bandolim, a viola, e nesta seqüência de cordas chegou o violão, o instrumento que o acompanha até aqui, aos 80 anos de idade, 70 deles dedicados à música.
“A música é hereditária, eu a herdei de meu pai, Manoel da Vera Cruz Leal, que era um excelente músico. Minha mãe tocava piano e todos os meus irmãos tocavam algum tipo de instrumento. A casa era uma verdadeira orquestra”, relembra Nonato. Mas a primeira participação oficial em um grupo musical veio pouco depois, quando já morava em Belém e foi apresentado pelo músico Aluísio Beviláqua ao conjunto regional Soberanos do Ritmo. Era uma época em que os conjuntos regionais reinavam em apresentações pelos coretos e clubes, executando em flauta, violão e cavaquinho, o choro, o samba, o samba-canção, o maxixe, a marcha, o bolero, a rumba e até mesmo o tango argentino.
Com o Soberanos do Ritmo viajou pela região amazônica fazendo shows, e foi morar no Rio de Janeiro, atrás da idéia de que “para tocar nada era longe”. Lá, apresentava-se nos lugares onde houvesse qualquer público, pois tudo o que importava era estar com “o pé na profissão”. Dois anos durou a aventura, interrompida pela separação do grupo. De volta a Belém, viveu uma juventude boêmia, envolvido pelo encanto das serestas, tendo sempre o violão por companheiro.
Tinha 25 anos quando foi convidado para vir a Macapá passar uma chuva. Era inverno, quando na Amazônia as chuvas multiplicam o tempo de quem tem pressa, aumentam as distâncias e enchem de poesia os repetidos verdes da paisagem. O músico foi ficando, porque a terra o foi acolhendo. E a chuva que veio passar tem durado 55 anos.
Chegou a Macapá no dia 2 de março de 1952, casou-se com Paracy Leite e construiu uma família de seis filhos: Venilton, Vanildon, Venilson, Vera, Vânia e Vanilze. Os primeiros nasceram junto com a Bossa Nova, no final dos anos 50, três deles trouxeram a música no sangue e no destino e, assim como Nonato, aprenderam a tocar por conta própria.
Nonato Leal não freqüentou conservatórios musicais nem teve em sua juventude professores que o elevassem, através de regras, disciplina e conhecimento, à categoria de grande músico. Tornou-se um grande músico graças à sua própria boa vontade, seu esforço e aos exercícios de imitação dos ídolos, cuja música sempre tirou de ouvido. Já possuía a experiência de um mestre quando precisou estudar música para tornar-se formalmente professor, aos 45 anos, tendo como instrutor Oscar Santos, o mestre Oscar, um revolucionário da educação musical no Amapá.
Mas Dilermando Reis, um dos mais importantes e versáteis violonistas brasileiros, falecido em 1977, é o seu grande ídolo. Considera que sempre aprendeu música ouvindo seus discos. Dele, Nonato tem uma de suas melhores lembranças: “No dia em que o conheci, toquei para ele uma valsa”. Outra influência importante em sua trajetória musical vem do violonista paraense Sebastião Tapajós, com quem cultiva antiga amizade. “Toda vez que o Sebastião Tapajós vem a Macapá eu aprendo algo novo com ele”, conta.
Nonato Leal tem participação importante na história dos festivais de música do Estado. O primeiro de que participou, na década de 1960, ainda no governo de Ivanhoé Martins, lhe rendeu as três primeiras colocações. O primeiro lugar com Canção Anti-muro, uma música de protesto feita em parceria com o poeta Alcy Araújo. O segundo lugar com uma parceria entre ele e o poeta Isnard Lima, e o terceiro lugar com o poeta Cordeiro Gomes. A parceria constante com Alcy, um dos seus grandes amigos, lhe rendeu ainda premiações em outros festivais, além de diversos sambas para escolas de samba de Macapá.
A realização do sonho da gravação de um disco, todavia, só veio aos 70 anos, através de incentivo do governador do Estado na época, João Capiberibe. Com a direção musical de Manoel Cordeiro, Nonato gravou Lamento Beduíno, em 1998, um CD com 15 faixas, cuja música principal é inspirada nas caravanas que atravessam o deserto do Saara. O segundo CD, Coração Popular, foi gravado em 2001 e, das 15 faixas, seis são composições suas. Os dois trabalhos tiveram suas edições esgotadas, e um terceiro está ainda no sonho do músico, que para gravar precisa de uma instituição ou empresa que assuma os custos.
Nonato sempre tocou pelos bares na noite, desde o princípio de sua carreira. A música sempre lhe garantiu renda. Hoje, todavia, prefere tocar menos nos bares, e ainda assim somente pela satisfação que lhe dá apresentar-se com seu violão ao público, pois mantém uma posição crítica em relação à exploração a que os novos músicos se submetem quando aceitam tocar na noite por qualquer preço. Outra consideração que Nonato Leal faz diz respeito à escolha dos músicos que se apresentam nos eventos culturais: “Existe uma discriminação acintosa ao artista idoso. Muitos produtores confundem idade e talento. Eles preferem apresentar um cantor de 20 anos, mas de uma mediocridade sem tamanho, do que dar espaço ao artista de mais idade”.
Em sua casa, na margem do lago da praça Floriano Peixoto, onde mora com a mulher Paracy, o músico renova sua inspiração diariamente com exercícios de violão – segundo ele, um bálsamo para atenuar qualquer problema. Come muito peixe, não fuma, faz caminhadas em torno do lago e diz que “não esquenta a cabeça”. Aos artistas novos, que vivem uma época em que a efervescência musical privilegia os gostos menos sofisticados, Nonato Leal, um músico de talento irretocável, recomenda paciência e humildade.
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