terça-feira, 16 de novembro de 2010

GILBERTO GIL E O SHOW "FUTURÍVEL"


Gilberto Gil com o guitarrista da banda matogrossense Macaco Bong

Pedro Alexandre Sanches

Em 1969, "Futurível" era o “futuro possível”, mote para uma deprimida canção tropicalista gravada por Gilberto Gil. “Você foi chamado, vai ser transmutado em energia/ seu segundo estágio de humanoide hoje se inicia”, cantava ele, melancólico, pouco depois de ser preso pela ditadura militar e pouco antes de partir para o exílio em Londres. Em 2010, "Futurível" se transmutou num espetáculo coletivo ancorado por um Gilberto Gil 41 anos menos moço, que já compôs uma música chamada "Minimistério" (em 1970) e já foi ministro da Cultura do Brasil, entre 2003 e 2008.

O artista deixou o ministério, mas permanece influente na pasta, assim como Juca Ferreira, que foi seu secretário-executivo e o substitui no cargo, e Claudio Prado, ex-coordenador de políticas digitais do MinC e diretor geral do novo "Futurível". O show, que aconteceu no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, no último domingo (14), foi concebido como evento de transição entre o Fórum Internacional Geopolítica da Cultura e da Tecnologia (de 11 a 13 de novembro), e o II Fórum da Cultura Digital Brasileira (15 a 17).

As interfaces com o MinC e com questões de política cultural faziam de "Futurível" um evento necessariamente político, e isso se concretizou em forma de música – principalmente pela convergência entre gerações, tradições e estilos idealizada por Claudio Prado, que no passado foi produtor dos festivais musicais de Glastonbury e de Águas Claras e das bandas/comunidades hippies Mutantes e Novos Baianos.

Gil dividiu o palco com uma das bandas mais celebradas da geração 2000, a matogrossense Macaco Bong. À Banda de Pife Princesa do Agreste, de Caruaru (PE), coube a tarefa de remeter ao passado e à história da música brasileira. O produtor Alfredo Bello fez a ponte entre tradição e novidade, em pique “música do mundo”, com o combo DJ Tudo e Sua Gente de Todo Lugar, feito de computador, metais, percussão, guitarra, baixo e bateria. As projeções do VJ Scan deram arremate visual a um conjunto para lá de diverso e descontínuo.

“O mutante é mais feliz”, dizia a letra de 1969, curiosamente não incluída no repertório do "Futurível" de 2010. Os momentos mais felizes do show foram aqueles nos quais a convergência de fato aconteceu, dando origem a números musicais mistos e algo caóticos, versões inesperadas do mutante insinuado 41 anos atrás. Não aconteceu o tempo todo, porque o espetáculo, imaginado para ser transgressor, se aprisionava por vezes ao formato conservador de ceder três ou quatro solos para a obra regular de cada um dos grupos participantes.

O primeiro flagrante de convergência foi quando estiveram juntos no palco o DJ Tudo, Gil e o Princesa do Agreste, para versões anárquicas do relicário nordestino de Jackson do Pandeiro, de "Chiclete com Banana" e "O Canto da Ema". Deixado sozinho no palco, o impactante quinteto Princesa do Agreste pregou tapa com luva de pelica no preconceito antinordestino que anda em voga no Sudeste, anunciando a orgulhosa e instrumental "Os Pretos do Norte". Por sinal, nortistas, nordestinos, negros, índios, minoritários e periféricos eram a razão de ser de todo o espetáculo – o Brasil que pratica preconceito, discriminação e separatismo é, provavelmente, o Brasil que não tem acesso à (ou interesse pela) cultura preconizada pelo ministério e seus agentes.

Como a mostrar que nem tudo são flores na convergência, Gil foi protagonista de algum saudosismo e deu brecha para pontas de conflito e divergência. A saudade despontou quando contou dos shows de quatro horas de duração que fazia nos anos 1970, e de como isso seria impossível nestes tempos de “racionalidade” e de “Ocidente”. Diante dos gritos de uma parte da plateia que pedia que o auditório se levantasse das cadeiras, esboçou uma reação de duplo padrão, ao mesmo tempo desafiadora de normas e das (novas) tradições e denunciadora de uma faceta autoritária. “Levantar das cadeiras em show de rock é um estereótipo”, afirmou, alfinetando o conservadorismo dos novos roqueiros, mas também inibindo a livre expressão da plateia – que só foi poder dançar ao final, lá fora, ao som da tradicional banda de pífanos.

A convergência se refez no embate geracional entre o velho baiano Gil (imponentemente grisalho, por sinal) e o rock afroíndio instrumental do Macaco Bong, em versões completamente novas (e esquisitas) de temas do repertório tropicalista, como "Bat Macumba" (1968), "Aquele Abraço", "Cérebro Eletrônico" e "Omã Iaô" (todas de 1969). Na ausência de "Futurível", uma canção equivalente, a obscura e esquecida "Vitrines" (do mesmo ano, e fortemente inspirada no filme "2001, uma Odisseia no Espaço", lançado em 1968 por Stanley Kubrick), cumpriu o papel simbolista de falar, de uma vez só, sobre passado, presente e futuro.

Gil, produtor militante de música brasileiríssima, soava excepcionalmente roqueiro e internacional ao lado dos rapazes do Mato Grosso. Embora não parecesse conhecê-los a fundo, soube captar o que há de mais ou menos escondido neles, e se pôs a entoar gritos tribais e a evocar os ancestrais indígenas no caminho mítico entre o Parque do Ibirapuera e o vale soterrado do Anhangabaú. Aí já estava todo mundo no palco outra vez, e a convergência mais uma vez se consumou, em torno do funk-reggae "Palco" (1981), da fase mais pop do ex-ministro, e de "Essa É Pra Tocar no Rádio" (1975), transmutada pelo autor em “essa é pra tocar na web”, enquanto o show era difundido em tempo real para o mundo todo, via internet.

Enquanto Gil, Macaco Bong e Princesa do Agreste se chocavam no palco, 1968 parecia subitamente deixar de ser “o ano que não terminou”. E o encontro "Futurível", embora praticamente livre de discursos, parecia fazer um balanço dos oito anos de cultura e do Ministério da Cultura, sob a direção de Lula e da turma de mutantes tropicalistas de Gilberto Gil. E agora, qual será o possível futuro futurível?

Foto: Divulgação/Geraldo Lazzari

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