sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

ESQUENTANDO OS TAMBORINS I


DESDE QUE O SAMBA É SAMBA É ASSIM
-
Aroldo Pedrosa
-
Algum tempo atrás tive ligeiro embate com o compositor/cantor amapaense Roni Moraes sobre a origem do samba. Eu argumentava baseado nas leituras que fiz (e não foram poucas) e na letra da canção de Caetano Veloso “Onde o Rio é mais baiano”, que o criador da Tropicália retribuíra à Mangueira, cujo enredo de 1994, “Atrás da verde-e-rosa só não vai quem já morreu”, homenageava os tropicalistas. E o embate com o Roni foi sobre “as Ciatas”, como está na letra do samba-reggae magistral de Caetano. Eu dizia que o samba nasceu na Bahia na região do recôncavo baiano, onde nascera Caetano – Santo Amaro da Purificação –, de onde as “tias Ciatas” o levaram (o samba) para o Rio de Janeiro. O poeta Vinicius de Moraes diz isso – que o samba nasceu na Bahia (ainda que não mencione as Ciatas) – em seu extraordinário “Samba da Bênção”, feito em parceria com Baden Powell e que eu costumo cantar na noite com o músico amapaense Chico Terra.
-
Que o samba nasceu na Bahia não há o que contestar. A questão é quem realmente o levou para o Rio de Janeiro. Eu digo que não foi uma apenas, mas várias Ciatas, como na letra de "Onde o Rio é mais baiano", cujo famoso compositor escreve com muita propriedade. A ala das baianas, quesito obrigatório no desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, é homenagem mais do que justa a elas – as Ciatas.
-
Como convidado da 1ª Conferência Livre de Comunicação para a Cultura, realizada em Recife (PE) e organizada pelo Ministério da Cultura-MinC, conheci o presidente do Pontão de Cultura Casa do Samba, Rosildo Rosário, lá de Santo Amaro da Purificação, e ganhei dele o maravilhoso CD “Samba de Roda – Suspiro do Iguape”, com 14 sambas de raiz, talvez, entre eles, os primeiros da história do samba. É um disco precioso que tenho ouvido muito e, a cada audição, percebido o quanto eles se parecem com o nosso “batuque”, que também veio da África, trazido pelos escravos (outra semelhança plausível são os chamados “tambores-de-crioula” do Maranhão). O samba da Bahia tem denominação de “samba de roda”, e Caetano, por ter nascido na região onde nasceu o samba, é um especialista no assunto. O último samba de roda dele é “13 de Maio” (Dia 13 de maio em Santo Amaro/ Na Praça do Mercado/ Os pretos celebravam/ (Talvez hoje inda o façam)/ O fim da escravidão/ Da escravidão/ O fim da escravidão), e outro que amo de paixão – “Boas-vindas” –, porque cantarolava para o meu filhinho Glauber Caetano ao nascer: Sua mãe e eu/ Seu irmão e eu/ E a mãe do seu irmão/ Minha mãe e eu/ Meus irmãos e eu/ E os pais da sua mãe/ E a irmã da sua mãe/ Lhe damos as boas-vindas/ Boas-vindas/ Boas-vindas/ Venha conhecer a vida... E por aí vai, com o toque sutil da saudosa Edith do Prato na percussão. Edith, irmã de Nicinha que é filha de criação de Dona Canô, a mãe centenária da Tropicália.
-
Como acabamos de entrar no ano de 2010 e fevereiro é o mês do Carnaval, nada mais oportuno para dissertar sobre a origem do gênero musical que mais identifica o Brasil culturalmente e o divulga pelo mundo afora. O Amapá mesmo, que o então presidente da França Jacques Chirac, ao se encontrar com o presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso, em 1998, às margens do rio Oiapoque para selar o acordo de construção da ponte binacional que vai ligar o estado a Guiana Francesa, achando que estava em território mexicano e, numa mancada internacional, chamou o Brasil de México. Se o encontro fosse hoje, depois naturalmente em que a Beija-Flor de Nilópolis levou para o Sambódromo do Rio de Janeiro a natureza exuberante do Amapá como enredo e ganhou o Carnaval de 2008, Chirac – assim como o atual presidente francês Sarcozy o fez recentemente ao lado de Lula – saberia que pisava em solo brasilis, que pisava num pedacinho da terra do samba, evitando o deslize internacional. Ora, mas pior do que isso, em um passado recentíssimo, era ouvir o mundo quase todo dizer que Buenos Aires era a capital do Brasil – não havia nada mais ofensivo pra nós que “mui amamos a Argentina”, sobretudo quando o assunto é futebol. Erros, equívocos, deslizes, mancadas, enfim... bem maiores, por exemplo, que pensar a África, em detrimento da Ásia, como o maior continente do planeta. Equívoco este que o compositor de “Onde o Rio é mais baiano” cometeu, numa madrugada, digitando em seu blog Obra em Progresso e imediatamente corrigido por um internauta mais atento. Os gênios, por serem naturalmente sempre tão inventivos, são bonitos até quando erram, como Caetano ao manter no blog a postagem da correção. Mas, convenhamos, trata-se de um erro comum que as pessoas cometem. Sinceramente, eu – que detesto confessar minha ignorância – só vim saber que o continente asiático é o maior de todos, depois que a escritora e jornalista Lulih Rojanski me trouxe a informação (como quem faz um gol) da ignorância geográfica do mestre tropicalista. E o Caetano que nem é chefe de estado e tampouco estava em viagem oficial pelo continente em que Pelé faz força com o pé. Em “Onde o Rio é mais baiano”, entretanto, no verso em que ele canta a história da origem do samba, o samba do recôncavo levado pelas tias baianas – as Ciatas –, que migraram para a cidade do Rio de Janeiro e lá o difundiram pelos quatro ventos, se tivesse errado, a imprensa implacável deste “meu Brasil brasileiro, terra de samba e pandeiro...” não o perdoaria, jamais! Mas, não... até porque antes ele também compusera – a pedido de Aracy de Almeida – “A voz do morto”: Estamos aqui no tablado/ Feito de ouro e prata/ E filó de nylon/ Eles querem salvar as glórias nacionais/ As glórias nacionais, coitados... Um samba monumental em que Caetano evoca na letra ser o próprio e cujo verso principal é um grande viva ao compositor Paulinho da Viola. E “Sampa” – Alguma coisa acontece no meu coração/ Que só quando cruza a Ipiranga e a Avenida São João... –, alguém por acaso fez homenagem igual a São Paulo? E “Desde que o samba é samba”, que Caetano canta “a lágrima clara sobre a pele escura”, comparando “a noite à chuva que cai lá fora”? São virtuosos sambas, que o próprio Chico Buarque de Holanda – carioca e especialista no gênero – se rendeu para gravar um deles, “Festa Imodesta”, em homenagem “àquele que se presta a esta ocupação”, ou seja, o compositor popular. Obra de quem realmente é do berço e emana do samba:
-
FESTA IMODESTA
Caetano Veloso
-
Numa festa imodesta como esta
Vamos homenagear
Todo aquele que nos empresta a sua testa
Construindo coisas pra se cantar
tudo aquilo que o malandro pronuncia
E o otário silencia
Numa festa que se dá ou não se dá
Passa pela fresta da cesta e resta a vida
Ah! Acima do coração
Que sofre com a razão
A razão que vota no coração
E acima da razão a rima
E acima da rima a nota da canção
Bemol, natural, sustenida no ar
Viva aquele que se presta a esta ocupação
Salve o compositor popular!
-
Procurando no Google mais subsídios para ampliar o conteúdo e ressonância deste artigo, encontrei algo que me parece com as pesquisas do dicionarista Luiz da Câmara Cascudo – na minha adolescência eu tinha um dicionário desse pesquisador da cultura brasileira com quem aprendi uma porção de coisas. Diz o texto do Google:
-
“Um dos terreiros mais famosos de que se tem notícia era o terreiro da Tia Ciata, uma das muitas baianas que migraram para o Rio de Janeiro, trazendo suas magias, orixás, comidas e muito axé. E estas valentes senhoras eram perseguidas por dois motivos: pelo culto do candomblé, que na visão das autoridades da época era algo profano, ou pelo culto do samba. Numa época em que os sambistas eram considerados um bando de marginais e desordeiros, a perseguição era implacável. Mas como tudo que é proibido e perseguido, na maioria das vezes, vira moda, foi daí que por este Brasil afora, as tias Ciatas foram se multiplicando e o samba se agigantando e tomando forma (o samba tomou seu feitio no morro, veio para a sociedade e não parou por ai)”.
-
No livro “Brasil Rito e Mito – Um Século de Música Popular e Clássica”, que a poeta Heluana Quintas me apresentou numa dessas noites de preguiça amazônica e chuva fina sobre a cidade, tem o artigo “Das raízes da MPB à chegada do samba”, assinado por Ricardo Cravo Albin, em que ele descreve com preciosismo o pioneirismo das tias Ciatas: “A mulata Hilária Batista de Almeida era dentre todas a mais cortejada”.
-
Alguns trechos do grande artigo:
-
“A população carioca mais pobre, especialmente a que descendia dos guetos da escravidão e que habitava os cortiços negros paupérrimos da zona da Cidade Nova e da Central do Brasil – a Praça Onze antiga era o coração, nas imediações de onde hoje está o Sambódromo –, continuava a exercitar-se em seus batuques e suas rodas de pernada e de capoeira. Eram, sobretudo, baianos e seus descendentes vindos desse estado com o fim da Guerra de Canudos, direito que ganharam por lutar nas tropas contrárias a Antônio Conselheiro”.
-
“Essa parte da população não saía no Carnaval de forma organizada, mas em blocos desordenados cujos desfiles terminavam quase sempre em grandes brigas de capoeira e em terríveis ‘cenas de sangue’, segundo o cronista João do Rio. Aliás, atento à evoluções urbanísticas do Rio, o cronista fez um paralelo curioso entre a Praça Onze dos ex-escravos e a Avenida Central (atual Avenida Rio Branco), inaugurada em 1902 e que ele considerava um traço de separação entre o Brasil passado e o novo: ‘A avenida chique/ Eu sou a Central/ Da elegância o tique/ Dou à capital’”.
-
“Da música à base de percussão e de palmas, produzida por esses negros com o nome de batucada, iria nascer o gênero popular mais nacionalmente representativo da música brasileira: o samba, palavra de origem africana (Angola e Congo, provavelmente corruptela da palavra ‘semba’, que pode significar umbigada, ou seja, o encontro lascivo dos umbigos do homem e da mulher na dança do batuque antigo. Ou também pode significar tristeza, melancolia (quem sabe da terra africana natal, tal como o blues nos Estados Unidos). Aliás, a palavra samba foi grafada pela primeira vez em 3 de fevereiro de 1838, por frei Miguel do Sacramento Lopes Gama, na revista pernambucana O Carapuceiro: nela, definia então mais um tipo de dança”.
-
“Além dessas rodas de capoeira e de batucada, quase sempre realizadas nas ruas e praças das imediações, ficaram célebres os festejos nas casas das até hoje celebradas ‘tias baianas’. Eram elas, em geral, senhoras gordas e grandes quituteiras, que davam festas para comemorar as datas importantes do calendário do candomblé. Os festejos duravam até uma semana: os pagodes, justamente nas casas das tias baianas, ocorriam em dois tempos, segundo me informaram não só Donga e João da Baiana mas também Pixinguinha e Heitor dos Prazeres, todos frequentadores e – à exceção de Pixinga – filhos de mãe-de-santo. No fundo da casa, ocorria a devoção aos orixás, com toda a preservação do ritual das datas do candomblé. Acabadas as obrigações, os pagodes tinham lugar, mas já em outros cômodos, geralmente nas salas da frente dos cortiços decadentes ou dos sobradões abandonados pela burguesia, então em busca de novos bairros da moda, como Botafogo, Laranjeiras e Humaitá”.
-
A “batucada”, levada da Bahia para o Rio de Janeiro, era o samba. Mas foi ali nas imediações da praça Onze, onde Brizola construiu o Sambódromo, que o samba se desenvolveu, inicialmente pelas mãos negras e mágicas de Donga que gravou o primeiro, “Pelo telefone” (O chefe da polícia pelo telefone mandou me avisar/ Que na carioca tem uma roleta para se jogar...). Depois João da Baiana, Pixinguinha e Heitor dos Prazeres foram ampliando a produção até chegar aos nossos dias. “Aquarela do Brasil”, do compositor mineiro Ary Barroso, tornou-se o mais famoso de todos ao ser ouvido por Walt Disney no sistema de som do aeroporto de Val-de-Cães, em Belém, numa escala de vôo do produtor de passagem pelo Brasil em meados dos anos 1940. Disney fez o filme “Você já foi a Bahia?”, misturando o desenho animado do personagem Zé Carioca (inspirado na malandragem famosa do Rio) com a imagem real da baiana Carmem Miranda e seus balangandãs, pondo na trilha o samba exaltação do Ary. A partir daí, impulsionado pela sofisticação da Bossa Nova inventada por João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes, não deu outra, o samba ganhou o mundo. E tudo começou naquele continente do outro lado do oceano Atlântico, que Caetano pensou ser o maior do planeta. O grandioso continente (pra mim, indiscutivelmente, o maior de todos) de onde navios negreiros carregados de homens negros como a noite, horrendos a dançar no balanço das ondas e no estalar do açoite, vieram trazendo o “semba” para o Brasil. E o “semba” foi se instalar logo aonde, diga lá...
-
ONDE O RIO É MAIS BAIANO
Caetano Veloso
-
A Bahia
Estação primeira do Brasil
Ao ver a Mangueira nela inteira se viu
Exibiu-se sua face verdadeira
Que alegria
Não ter sido em vão que ela expediu
As Ciatas pra trazerem o samba pra o Rio
(Pois o mito surgiu dessa maneira)
E agora estamos aqui
Do outro lado do espelho
Com o coração na mão
Pensando em Jamelão no Rio Vermelho
Todo ano, todo ano
Na festa de Iemanjá
Presente no dois de fevereiro
Nós aqui e ele lá
Isso é a confirmação de que a Mangueira
É onde o Rio é mais baiano...
-
Foto da Beija-Flor 2008: Luís Alvarenga

Nenhum comentário: