quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

PSEUDO-INTELECTUAL DE MIOLO MOLE


CULT: O que você achou da repercussão crítica do livro O mundo não é chato? Você acha que há uma espécie de resistência oficial ao seu pensamento crítico? Uma espécie de correlato do velho problema que certos discursos eruditos e acadêmicos têm em relação à legitimação do vigor, da radicalidade, da inventividade e do caráter crítico da canção popular? Quando você lançou o filme O cinema falado houve uma resitência prévia ao filme, que revela, necessariamente, um fisiologismo de defesa do território. Você acha que, assim como alguns cineastas não lhe deram o direito de fazer um filme, há forças intelectuais no Brasil que não lhe dão o direito de exercer a prosa crítica?
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Caetano Veloso: Ninguém me tira o direito, não. Ninguém me impede de publicar. Mas também eu não tenho a ambição de publicar textos críticos. A primeira vez foi em Alegria, alegria - coletânea de textos dispersos e publicados entre 1966 e 1976, organizada por Waly Salomão - que eu ouvi esse mesmo tom de desprezo. Mas não fico frustrado, não espero muito. Agora, isso que você descreveu quando falou de O cinema falado é verdade. Isso acontece comigo e continua acontecendo, talvez seja a razão porque não há a atenção que você desejaria a um livro como O mundo não é chato. Eu nem prestei muita atenção à repercussão que teve esse livro... Verdade tropical, sim, mas porque tinha acabado de escrever e quis saber o que as pessoas falavam. Tem coisas muito chatas também. A Folha de S. Paulo fez todo um número da Ilustrada ou do Mais!, não me lembro, todo para criar problemas com o livro. Não para uma apreciação remotamente razoável. Era um negócio programaticamente chato. E acho que se deve a isso mesmo que você descreveu: resentimento. Mas, por outro lado, não acho que seja isso. Acho que há desinteresse genuíno. Não sou um sujeito preparado pra isso. Não me preparei nem estou me preparando para ser um ensaísta. Eu me lembro que, quem primeiro falou contra isso de uma maneira contundente e que me impressionou muito bem, foi o José Guilherme Merquior.
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CULT: Ele disse que você é um "pseudo-intelectual de miolo mole"...
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Caetano Veloso: Eu adoro "pseudo-intelectual de miolo mole"[risos]. Ele, Merquior, foi o primeiro que explicitou a questão tão honestamente, defendendo o território. Eu concedi uma entrevista a IstoÉ, na qual fiz uma brincadeira sobre ele, que acabara de sair numa revista posando no meio de livros. Era gozado, porque ele falava mal de Freud e da psicanálise dizendo que não valem nada. Eu disse que destestei aquilo porque ele estava falando mal de narcisismo e ficava posando no meio de livros como um pop star. Ele levou isso como se eu estivesse dizendo que os ensaístas estavam querendo tomar o meu lugar. Fez uma inversão inteligente. Bem sacada, de polemista experimentado. Merquior não era bom crítico literário. Quando conheci o Augusto e o Haroldo de Campos, li tantos artigos maravilhosos deles, que percebi que José Guilherme, do ponto de vista de apreciação literária, deixava a desejar. Mas eu não sou um Roberto Schwarz. Não me preparei pra isso. Passo a maior parte do meu tempo em uma vida frívola de compositor de música popular. Fico no estúdio com colegas cantando, tocando, volto pra casa pra ver a música e tenho que relembrar. Posso captar uma harmonia com certa dificuldade, mas posso. Depois de algum tempo, esqueço. Minha acuidade musical não é muito forte, então tenho que me debruçar um pouquinho sobre canções. Por exemplo, eu quero cantar "Moon river" no show de abertura da exposição de Pedro Almodóvar em Paris, entre outras canções que tive que tirar. Umas são mais fáceis. "Ne me quitte pas", acho uma harmonia chata de tirar, feia. Mas "Mooon river" queria tirar. Fiquei muitas horas perdendo ou ganhando meu tempo para cantar a música. "Moon river" não pode ser comparada com Ulisses, de James Joyce. Entende, eu não tenho tempo de estudar nem Derrida, Kant ou Proust. Não que não os tenha lido, li alguma coisa de todos eles, mas não posso me dedicar a isso.
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CULT: A erudição também não é uma condição fundamental...
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Caetano Veloso: Sim, mas o cara que se prepara para isso e vive concentrado nisso é mais capaz. Não me sinto assim. Sou aquele personagem "pseudo-intelecutal de miolo mole", mas ao mesmo tempo consigo cantar. Tenho canções que fazem sucesso, outras nem tanto, mas não são irrelevantes. Minha opinião sobre mim é essa. Juro por Deus... Eu não acredito em Deus [risos].

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